Tributo declarado inconstitucional não gera persecução criminal

Luciano Feldens, contextualizando o papel da persecução criminal fundada no chamados direitos fundamentais de terceira geração[1], leciona:

Ao Direito Penal, nessa perspectiva, reserva-se uma missão de inquestionável relevância, voltada à conferência de especial proteção a essas objetividades que, alçadas ao plano constitucional – circunstância a já denotar a sua essencialidade –, carregam consigo a nota da transindividualidade: os direitos e interesses coletivos e difusos, os quais, a partir de sua incorporação pelo sistema jurídico-penal, se habilitariam a ser categorizados, também, como bens jurídicos coletivos e difusos.[2]

E conclui o autor:

[…] conceitos político-normativos como ordem econômica, ordem tributária, regularidade do sistema financeiro enfeixam uma relação de significados na qual se contém, para além do interesse público stricto sensu, o interesse de todos os sujeitos sociais – indivíduos conviventes em sociedade – submetidos a essas categorias […][3]

A dimensão do interesse público tutelado pela tipificação penal do inadimplemento tributário pode ser elucidada segundo a valorosa lição de Celso Antônio Bandeira de Mello:

Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consiste no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público.

É que, além de subjetivar estes interesses, o Estado, tal como os demais particulares, é, também ele, uma pessoa jurídica, que, pois, existe e convive no universo jurídico em concorrência com todos os demais sujeitos de direito. Assim, independentemente do fato de ser, por definição, encarregado dos interesses públicos, o Estado pode ter, tanto quanto as demais pessoas, interesses que lhe são particulares, individuais, e que, tal como os interesses delas, concedidas em suas meras individualidades, se encarnam no Estado quanto pessoa. Estes últimos não são interesses públicos, mas interesses individuais do Estado, similares, pois (sob o prisma extrajurídico), aos interesses de qualquer outro sujeito.

Não é raro que administradores e diretores de empresas vejam seus nomes envolvidos em notitia criminis veiculadas pelos órgãos de fiscalização tributária sem qualquer avaliação ou valoração objetiva acerca de suas condutas ou da legitimidade e exigibilidade do tributo exigido, em si.

A superficialidade dessa prática fiscal inconsequente contrasta com a gravidade da imputação a esses sujeitos, ainda que em tese, da prática de atos criminosos, trazendo à evidência o fato de que o verdadeiro escopo dos expedientes criminais é unicamente servir de instrumentos de coação para pagamento de tributo indevido. 

Noutras palavras, a persecução penal deixa de servir a um interesse público efetivo (coletivo e afeto à preservação da ordem tributária) e passa a ser um instrumento de grave coação para atendimento a interesse individual do Estado (meramente arrecadatório). 

Um exemplo emblemático dessa distorção é o fato de que empresários continuam a ser investigados criminalmente e coagidos a pagar tributo já sabidamente indevido, cujo escoramento legal foi declarado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal – STF em 24/02/2021, quando do julgamento conjunto do Recurso Extraordinário (RE) 1287019, com repercussão geral (Tema 1093), e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5469.

O tributo indevido, fundado em ato normativo já declarado inconstitucional pelo STF em controle concentrado de constitucionalidade, não pode sustentar a legitimidade da persecução criminal. 

Sucede, contudo, que a modulação dos efeitos dessas decisões proferidas pelo STF, tem servido de muleta para sustentar questionáveis ordens de instauração e prosseguimento de inquéritos policiais. 

Os efeitos tributários da inconstitucionalidade nesse caso, como se sabe, foram modulados para a partir do exercício financeiro seguinte à conclusão dos referidos julgamentos, isto é, de 01/2022. 

Os efeitos criminais, por sua vez, não sofrem qualquer ressalva desse tipo porque são imediatos e retroativos (art. 5⁰, XL, CF88). 

Ao agir de maneira absurda e colocar o aparato policial no encalço dos administradores e diretores de empresas tentando valer-se da modulação tributária, fica evidente que a Administração Pública decidiu dar uma última – e ilegal – cartada para receber o tributo indevido e não ser posteriormente obrigada a devolvê-lo. 

Isso porque, caso optem os averiguados por adimplir o débito para ver declarada a extinção da punibilidade e cessados os constrangimentos advindos deste inquérito (cf. art. 69, da Lei n. 11.941/09), é fato que nem eles nem a empresa poderão mais postular a repetição do indébito tributário, na medida em que o direito a tal devolução estará fatalmente obstado pelos mesmos efeitos modulatórios. 

É, pois, kafkiana a situação. 

Não há, sob qualquer perspectiva que se analise esse movimento, interesse público que esteja realmente sendo perseguido em âmbito criminal. 

O bem jurídico tutelado não é a preservação e integridade da ordem tributária , mas unicamente um interesse arrecadatório e individual do Estado que, 5 mesmo ciente de julgamento proferido em controle concentrado de constitucionalidade em seu desfavor, instaura e mantém em curso inquéritos policiais com o fito de constranger os administradores das empresas a pagarem tributo sabidamente indevido. 

A persecução criminal é manifestamente ilegal nessas condições porque se volta contra fatos atípicos, à luz da absoluta impropriedade do objeto de que trata o art. 17, do Código Penal – CP.

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[1] Ligados aos valores humanos de solidariedade e fraternidade, consubstanciam-se em direitos de ordem difusa, coletiva e transindividual.

[2] FELDENS, Luciano. Tutela penal de interesses difusos e crimes do colarinho branco: por uma relegitimação da atuação do Ministério Público: uma investigação à luz dos valores constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 31. Grifos não originais.

[3] Ibidem. p.33. Grifos não originais.

[4] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 32ª edição. São Paulo: Malheiros Editores, 2015. p. 65/66. Grifos não originais.

[Artigo escrito por Paulo Patrezze e Renan Mandarino].

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