Sigilo profissional do médico: regra e exceções

A medicina se baseia na relação de confiança que se estabelece entre o paciente e seu médico e se constrói pelo compromisso do paciente em revelar informações necessárias e suficientes ao médico, favorecendo o diagnóstico e tratamento correto, enquanto o médico garante que tais informações serão usadas única e exclusivamente no tratamento daquele paciente.

Por ser um assunto de extrema importância, o sigilo médico não é tratado apenas no Código de Ética Médica, uma das primeiras referências do dever de sigilo surge ainda no Juramento de Hipócrates: “nas casas em que entrar para exercer meu mister, minha boca será muda sobre o que eu vir ou ouvir, o que não seja necessário revelar, conservarei em segredo”[1].

A Constituição Federal de 1988 no inciso X[2], do artigo 5º que prevê a inviolabilidade do sigilo profissional por tratar-se de direito inerente à intimidade e à vida privada, guardando assim, estrita relação com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.

Já o Código de Ética Médica prevê no inciso XI do Capítulo I – que trata dos Princípios Fundamentais que: “O médico guardará sigilo a respeito das informações de que detenha conhecimento no desempenho de suas funções, com exceção dos casos previstos em lei”.

Ainda no seu Capítulo IX, artigo 73 dispõe: “[É vedado ao médico] Revelar fato que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão (…)”.

No conceito de Correia das Neves[3], o sigilo profissional médico é “a reserva que todo indivíduo deve guardar dos fatos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, fatos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é pedido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão”.

Dessa forma, a regra é a inviolabilidade do sigilo médico, tanto é assim que a sua violação pode caracterizar, além de infração ética, infração penal e até civil.

O Tribunal de Justiça de São Paulo já proferiu decisão condenado o Município de Guarulhos no pagamento de indenização no valor de R$30.000,00 pelo fornecimento não autorizado de cópia do prontuário médico de atendimento da paciente pelo Hospital Municipal de Urgências[4].

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça entendeu ser inadmissível provas obtidas com a quebra de sigilo de dados médicos sem autorização judicial prévia, por determinação de membro do Ministério Público[5]. No acordão proferido o Ministro Relator entendeu que “é notório que a Constituição Federal garante a todos o sigilo profissional em seu art. 5º, XIV, que preceitua: Art. 5º. […] XIV. É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional. Tal sigilo se estende ao médico e ao farmacêutico, só perdendo espaço quando há confronto com outras garantias Constitucionais, e, em uma interpretação harmônica do caso concreto, visando a busca do interesse público, for necessária a sua mitigação, como nos casos em que há a suspeita de prática de crimes”.

Ainda, o Ministro Relator do Superior Tribunal de Justiça complementa o seu entendimento transcrevendo a seguinte ementa:

O sigilo profissional não é absoluto, contém exceções, conforme depreende-se da leitura dos respectivos dispositivos do Código de Ética. A hipótese dos autos abrange as exceções, considerando que a requisição do prontuário médico foi feita pelo juízo, em atendimento à cota ministerial, visando apurar possível prática de crime contra a vida. Precedentes análogos. Recurso desprovido.(RMS 11.453/SP, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 17/06/2003, DJ 25/08/2003, p. 324)

Portanto, o dever de sigilo não é uma regra absoluta. De acordo com Genival Veloso França[6] a relativização do dever de sigilo pode não configurar uma infração quando visa proteger um interesse contrário e mais importante, ou seja, pode correr em situações pontuais, em que evidenciadas a sua necessidade por razões de interesse público e legal.

Nesse sentido, a violação do sigilo é admitida em algumas situações, tais como: (a) quando existe autorização expressa do paciente, como por exemplo, emitir atestados médicos com CID; (b) quando há dever legal do médico em notificar as autoridades públicas, como por exemplo, doenças infectocontagiosas (Portaria 264/2020 do MS) ou quando desconfiar de violência doméstica contra a mulher (Lei 10.778/2003 – alterada pela Lei 13.931/2019 – notificação compulsória no prazo máximo de 24 horas) ou maus tratos contra criança; (c) nos casos que houver motivo justo, ou seja, razão superior relevante ou estado de necessidade; (d) nos casos de crime de ação penal pública incondicionada e quando não expor o paciente a processo criminal como réu; (e) no caso de paciente falecido; e, (f) para apresentação de defesa em ações judiciais (legítima defesa).

Assim, como visto, a violação do dever de sigilo profissional também pode decorrer de uma imposição legal, como estabelece o artigo 269, do Código Penal[7]: “Deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória: Pena – detenção, de seis a dois anos, e multa”.

Não se deve confundir o dever legal com a violação do sigilo motivada pela justa causa, identificada por um interesse de ordem moral ou social que fundamente a não observância na norma ética[8].  A título de exemplo, pode ser citado a situação da proteção da vida de terceiros, ou seja, a obrigatoriedade de informação ao parceiro do paciente diagnosticado com HIV.

Genival Veloso França explica que “o universo da justa causa é tão amplo, que pode existir até nos fatos mais triviais de quem exerce uma atividade”[9]. No entanto, a justa causa deve sempre ser analisada com base no bom senso e no interesse de ordem moral ou social, de modo a justificar a inobservância da regra do sigilo médico.

Por todo o exposto, em situações específicas e desde que fundamentada em valores relevantes para a sociedade, a violação do segredo é permitida. No entanto, é importante destacar que o dever de sigilo não pode ser negligenciado e precisa ser observado sempre que não ocorrer nenhuma das hipóteses autorizadoras da sua violação.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

BRASIL. Código Penal: promulgado em 07 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

BRASÍLIA.  Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 150.603 – PR (2021/0226361-0). Relator: Ministro Olindo Menezes. 17 de dezembro 20218. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2114132&num_registro=202102263610&data=20211217&formato=PDF. Acesso em: 06 de fevereiro de 2022.

Código de ética médica. Resolução nº 2.217 de 27 de setembro de 2018. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA (CFM – Brasil) – Brasília. Disponível em https://portal.cfm.org.br/images/PDF/cem2019.pdf. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

DANTAS, Eduardo; COLTRI, Marcos. Comentários ao Código de Ética Médica. 4ª ed. São Paulo: Editora JusPodivm0, 2022.

FRANÇA, G.V. de. O Segredo Médico e a nova ordem bioética. Disponível em: https://psiquiatriageral.com.br/bioetica/texto1.htm#:~:text=Constitui%2Dse%20hoje%20o%20sigilo,contr%C3%A1rio%20superior%20e%20mais%20importante. Acesso em 23 de janeiro de 2022.

LEITE, F. B. de C. A relativização do sigilo profissional médico. Cadernos de iniciação científica. Curitiba, 2012. Disponível em https://juslaboris.tst.jus.br/handle/20.500.12178/95155. Acesso em: 21 de janeiro de 2022

NETO, Miguel Kfouri. Responsabilidade Civil do Médico. 10.ed. – São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019.

SÃO PAULO: CREMESP, 2012. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Quebra de sigilo por “motivo justo” causa grandes dilemas aos médicos. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1550#:~:text=Justa%20causa%20e%20dever%20legal&text=Na%20pr%C3%A1tica%2C%20uma%20das%20situa%C3%A7%C3%B5es,sua%20condi%C3%A7%C3%A3o%20aos%20seus%20parceiros. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 1020252-19.2020.8.26.0224. Relator: Antonio Carlos Villen. 02 de outubro de 2021. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1.Acesso em: 10 de novembro de 2021


[1] França GV. Comentários ao Código de Ética Médica. 4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2002.

[2] X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[3] NEVES, Correia das. Violação do sigilo médico e exercício ilegal da Medicina. Lisboa: Livraria Petrony, 1963, 15 p. apud LIMA, Carlos Vital Tavares Corrêa. O sigilo médico. Revista do Médico Residente, Paraná, v. 12, n.2, 2010.

[4] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça. Agravo de Instrumento nº 1020252-19.2020.8.26.0224. Relator: Antônio Carlos Villen. 01 de outubro de 2021. Disponível em: https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1.Acesso em: 10 de novembro de 2021.

[5] BRASILIA.  Superior Tribunal de Justiça. Recurso em Habeas Corpus nº 150.603 – PR (2021/0226361-0). Relator: Ministro Olindo Menezes. 17 de dezembro 20218. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=2114132&num_registro=202102263610&data=20211217&formato=PDF. Acesso em: 06 de fevereiro de 2022.

[6] FRANÇA, G.V. de. O Segredo Médico e a nova ordem bioética. Disponível em: https://psiquiatriageral.com.br/bioetica/texto1.htm#:~:text=Constitui%2Dse%20hoje%20o%20sigilo,contr%C3%A1rio%20superior%20e%20mais%20importante. Acesso em 23/01/2022.

 [7] BRASIL. Código Penal: promulgado em 07 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

[8]  São Paulo: CREMESP, 2012. CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Quebra de sigilo por “motivo justo” causa grandes dilemas aos médicos. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Jornal&id=1550#:~:text=Justa%20causa%20e%20dever%20legal&text=Na%20pr%C3%A1tica%2C%20uma%20das%20situa%C3%A7%C3%B5es,sua%20condi%C3%A7%C3%A3o%20aos%20seus%20parceiros. Acesso em 06 de fevereiro de 2022.

[9] Op. Cit.

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