Responsabilidade patrimonial: quando o patrimônio assume as dívidas

Frente a polarização de demandas judiciais, tornou-se necessário estipular meios para o cumprimento dos acordos garantindo a rotação do sistema e a segurança jurídica das decisões, sem ferir mandamentos constitucionais fundamentais. O princípio da responsabilidade patrimonial é exemplo de fonte legítima para tal finalidade, e suas exceções são indispensáveis para suportar todas as especificidades civis. 

Resultado de longa evolução histórica, o princípio da responsabilidade patrimonial representa avanço da atribuição dos direitos e garantias fundamentais na dignidade da pessoa humana, ao estabelecer que somente os bens do executado responderão pela satisfação do crédito em execução. 

Conforme ensinamentos de Renato Montans de Sá, nos tempos do império romano, a execução recaía sobre a pessoa, ou seja, o devedor respondia com sua vida ou com sua liberdade, além de que poderia transpassar do indivíduo para seus familiares. Medidas extremas e desproporcionais de prisão, tortura e mutilação, que visavam o cumprimento de uma obrigação. A partir do século XIX, observou-se uma série de relevantes mudanças decorrentes da revolução francesa, principalmente a conquista da valorização do homem em sociedade.

Os reflexos atingiram suas obrigações. Atualmente, o Código Civil no seu art. 391 e o Código de Processo Civil nos arts. 789, 824 e 831 trazem o princípio da patrimonialidade onde todos os bens do devedor respondem ao cumprimento do crédito atual ou futuro, ou seja, a execução para satisfação material do direito somente pode recair sobre o patrimônio do executado, excluindo qualquer possibilidade de incidir sobre a pessoa. 

No vigente ordenamento jurídico, só há uma única possibilidade de prisão civil, extraída do direito de família, que versa sobre o devedor de alimentos. Todavia, por si só, não tem caráter satisfatório da dívida, é apenas instrumento provocativo para atingir tal fim. 

Assim, diante da importância do tema, tornou-se princípio a ser seguido, necessitando estabelecer um conjunto de regras para sua efetiva aplicabilidade. O dispositivo normativo, apesar de prever que todos os bens estão sujeitos à execução, traça uma exceção com restrições em lei admitidas, logo, certos bens não estão suscetíveis à responsabilidade executiva, por possuírem características essenciais à proteção da dignidade humana. 

Segundo afirma o doutrinador André Vasconcelos Roque, salvo hipóteses de impenhorabilidade previstas em lei, os bens em regra atingidos serão os atuais/presentes e correspondem aos já existentes e integrantes ao conjunto patrimonial do devedor, e os bens futuros que seriam aqueles que passam a integrar posteriormente, dentro do curso da execução. O autor também traz a figura dos bens pretéritos, que já foram perdidos pelo executado, porém continua a deve-los pela natureza do negócio firmado, sendo o caso de obrigações reipersecutórias, frente a fraude contra credores ou fraude à execução. 

Caso os bens sejam ausentes ou, com sua existência, enquadram-se na exceção apresentada, a execução deverá ser suspensa, conforme art. 921, inc. III do CPC. Da mesma forma que, caso haja nova hipótese de impenhorabilidade antes da execução da penhora, aquela não pode ser considerada, entretanto, sua revogação com a execução em curso, enseja a penhora do bem. 

A responsabilidade patrimonial rege os processos de execução com título judicial e extrajudicial, configurando princípio base para qualquer tipo de execução civil, relevando sua importância processual. O art. 924 do CPC, determina o tempo de sua eficácia, que subsistirá até o cumprimento do feito ou por qualquer motivo de extinção. 

A luz da dicotomia entre regra e exceção, na disposição dos sujeitos não seria diferente. A responsabilidade patrimonial dita como primária, torna-se a regra pois apenas o sujeito que contrair a dívida estará obrigado a pagá-la. Todavia, há exceção à essa premissa, pois assim foi querido pelo legislador. 

Os incisos do art. 790 do CPC trazem um rol de sujeitos que, apesar de não participarem do negócio jurídico originário da obrigação, responderão com seus bens pela dívida de outrem, justamente por possuírem algum vínculo com este, sendo os casos de responsabilidade patrimonial secundária. 

O art. 139, inciso IV, do CPC discorre sobre os poderes, deveres e responsabilidade do magistrado, que poderá “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.”

Chamadas de medidas executivas atípicas, outras condutas poderão ser utilizadas para pressionar o devedor a adimplir com suas obrigações por meios que vão além do seu patrimônio. Contudo, há grande discussão acerca da sua disponibilidade e alcance, podendo encontrar posições doutrinárias divergentes e julgados nos dois sentidos. 

Para Marcus Vinicius Rios Gonçalves, “os meios de coerção, como a multa, a busca e apreensão e a tomada de bens não violam o princípio da patrimonialidade, já que dizem respeito aos bens do devedor, não à sua pessoa.”

Justifica Renato Montans de Sá que diante dessas medidas atípicas, não será possível ultrapassar os limites dados pela Constituição ao Estado, ou seja, sua atuação será restrita aos ditames constitucionais sempre respeitando, primordialmente, seus valores e princípios.

Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça acompanha mesmo sentido, recaindo sobre a divergência da aplicação de medidas executivas atípicas à liberdade de locomoção: 

RECURSO ESPECIAL. EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. CHEQUES. VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVO CONSTITUCIONAL. DESCABIMENTO. MEDIDAS EXECUTIVAS ATÍPICAS. ART. 139, IV, DO CPC/15. CABIMENTO. DELINEAMENTO DE DIRETRIZES A SEREM OBSERVADAS PELA SUA APLICAÇÃO. 1. Ação distribuída em 1/1/2009. Recurso especial interposto em 21/9/2018. Autos conclusos à Relatora em 7/1/2019. 2. O propósito recursal é definir se a suspensão da carteira nacional de habilitação e a retenção do passaporte do devedor de obrigação de pagar quantia são medidas viáveis de serem adotadas pelo juiz condutor do processo executivo. 3. A interposição de recurso especial não é cabível com base em suposta violação de dispositivo constitucional ou de qualquer ato normativo que não se enquadre no conceito de lei federal, conforme disposto no art. 105, III, da CF/88. 4. O Código de Processo Civil de 2015, a fim de garantir mais celeridade e efetividade ao processo, positivou regra segundo a qual incumbe ao juiz determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária (art. 139, IV). 5. A interpretação sistemática do ordenamento jurídico revela, todavia, que tal previsão legal não autoriza a adoção indiscriminada de qualquer medida executiva, independentemente de balizas ou meios de controle efetivos. 6. De acordo com o entendimento do STJ, as modernas regras de processo, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. Precedente específico. 7. A adoção de meios executivos atípicos é cabível desde que, verificando-se a existência de indícios de que o devedor possua patrimônio expropriável, tais medidas sejam adotadas de modo subsidiário, por meio de decisão que contenha fundamentação adequada às especificidades da hipótese concreta, com observância do contraditório substancial e do postulado da proporcionalidade. 8. Situação concreta em que o Tribunal a quo indeferiu o pedido do recorrente de adoção de medidas executivas atípicas sob o fundamento de que não há sinais de que o devedor esteja ocultando patrimônio, mas sim de que não possui, de fato, bens aptos a serem expropriados. 9. Como essa circunstância se coaduna com o entendimento propugnado neste julgamento, é de rigor – a vista da impossibilidade de esta Corte revolver o conteúdo fático-probatório dos autos – a manutenção do aresto combatido. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido. STJ – REsp: 1788950 MT 2018/0343835-5, Relator: Ministra Nancy Andrighi, Data de Julgamento: 23/04/2019, T3 – Terceira Turma, Data de Publicação: DJe 26/04/2019. Grifos acrescidos. 

Atualmente, o entendimento adotado pelo STJ é de adequação das medidas atípicas no processo de execução, cujas peculiaridades do caso concreto determinarão sua utilização e alcance, não devendo ser aplicadas indistintamente por conta de sua potencial intensidade na restrição de direitos fundamentais. Logo, o magistrado poderá se valer das ferramentas outorgadas, desde que reconheça as variações fáticas, pondere a individualidade do executado e respeite as limitações constitucionais, levando a medidas atípicas razoáveis para atingir a satisfação da execução.  

Dessa forma, o princípio da responsabilidade patrimonial deve ser a medida primária adotada, onde se resguarda a integridade física do executado, mas atacam-se os bens em favor do credor para cumprir obrigação firmada. Além dessa proteção pessoal conquistada pela evolução das garantias fundamentais, foi estabelecido bens que, mesmo de sua titularidade, serão excluídos de execução por prevalência e superioridade da dignidade da pessoa humana.

Efetivada análise ao princípio em tela, por razão de medidas que afastam a tipicidade patrimonial, conhecidas por atípicas, delegadas ao juízo a quo, porém não deliberadas, entende-se que possuem seu valor ao adequarem meios eficazes na promoção do cumprimento de obrigações, desde que proporcionais caso a caso. 

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