O projeto da nova execução fiscal e a violação às garantias do contribuinte

“A cobrança judicial tem por finalidade assegurar que serão observados todos os direitos e garantias do devedor, e com o contribuinte não pode ser diferente”

No começo deste mês, o Jornal Valor Econômico noticiou que o novo secretário de Reforma do Judiciário, Marivaldo de Castro Pereira, quer catalisar a aprovação de projetos de lei no Congresso Nacional que alteram a execução fiscal, com a finalidade de reduzir a quantidade de demandas judiciais tributárias, criando alternativas para o pagamento do crédito. 

Neste ponto é que há necessidade de máxima cautela. As alternativas têm como único propósito exatamente isso: o pagamento. Mas seria este o único desfecho possível de uma execução fiscal?

Ora, o simples fato de partir da Fazenda Pública não faz inquestionável a suposta dívida. Não raramente o poder público ajuíza execuções para recebimento de tributos já caducos (como no caso da contribuição previdenciária lançada depois de escoados cinco anos dos fatos geradores) ou manifestamente indevidos, como a cobrança de ISS sobre aluguel de bens móveis ou sobre franquias postais, dentre tantos exemplos.

Na minuta de um dos anteprojetos que ganhariam o empenho do secretário recém empossado, cria-se a chamada execução administrativa para créditos da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios, de suas respectivas autarquias e fundações públicas. Por essa sistemática, o crédito da União, por exemplo seria inscrito e executado na Procuradoria da Fazenda Nacional, em vez de sê-lo perante o Poder Judiciário.

Parece, realmente, que a retenção na fonte, comum na arrecadação, passará a ser aplicada aos julgamentos: o julgamento retido na fonte. É que o anteprojeto evidentemente esquece – involuntária ou intencionalmente, não se sabe – que a Procuradoria é parte, ou seja, é a pessoa jurídica que se reputa credora e diretamente interessada na solução da demanda em seu favor. Não poderia, nessa condição, julgar se o suposto crédito é ou não legítimo. Não é imparcial para isso.

Aliás, ser parcial é sua função institucional. As procuradorias representam – única e exclusivamente – o interesse do ente público a que se vinculam; o procurador não é fiscal da lei, como são os promotores. Suas honrosas atribuições adstringem-se à defesa dos cofres públicos. Devem fazê-lo com o fervor que todos os causídicos devem aplicar às causas em que atuam e essa atividade não se coaduna com a imparcialidade necessária aos órgãos julgadores.

A cobrança judicial tem por finalidade assegurar que serão observados todos os direitos e garantias do devedor, e com o contribuinte não pode ser diferente. Historicamente, foi a proteção aos contribuintes que, em 1215, fizeram surgir a primeira Constituição na Inglaterra e as demais garantias que se lhe sucederam, em favor dos cidadãos, como forma de impor limites ao poder do Estado.

A execução administrativa, nessa ordem de ideias, é um franco retrocesso, porque coloca nas mãos do credor – o portentoso Estado – poder de vida e de morte sobre seus devedores. 

Nenhum credor particular experimenta tamanha potestade, sobretudo porque todos os títulos representativos de dívida e que podem ser diretamente executados perante o Poder Judiciário têm, em alguma medida, um ato de vontade do devedor em sua formação: um cheque assinado, um contrato comprovadamente cumprido por uma das partes, uma nota promissória firmada pelo devedor, uma duplicada com aceite ou uma prova de entrega de mercadoria. Somente o Poder Público pode produzir unilateralmente um título desses: a certidão de dívida ativa.

Precisamente por isso é que seria kafkiano consentir que, além de gerar sozinho o comprovante de existência de uma dívida em seu favor, o Poder Público pudesse julgar a execução desse título.

Como se fosse uma benesse em prol dos contribuintes, dentre as principais alterações proclamadas como novidade pelos arautos da mudança legislativa, está a possibilidade de se questionar o próprio débito durante a fase administrativa. Isso não representa novidade nenhuma. Há muito que os contribuintes podem-se valer do chamado contencioso administrativo, pedindo a revisão dos débitos. Existem órgãos colegiados já longevos, como o Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, um órgão colegiado composto por representantes do fisco e dos contribuintes, como o antigo Conselho de Contribuintes (hoje CARF). Essa possibilidade é garantida constitucionalmente, inclusive com direito a pelo menos dois julgamentos e suspensão da exigibilidade enquanto tramitar o processo administrativo.

A possibilidade de penhora administrativa – esta sim uma novidade do anteprojeto – revela mais uma faceta despótica das mudanças, que se aproxima da célebre derrama (método drástico e forçado pelo qual a Coroa Portuguesa esfolava os colonos brasileiros nos áureos tempos da mineração). Os contribuintes revoltosos daquele tempo são hoje heróis nacionais.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *