ICMS na transferência de mercadorias entre matriz e filiais

Desencontros amorosos estão muito presentes no cancioneiro popular, como na célebre composição de Lúcio Cardim “Matriz ou filial”, que se inicia com o dramático verso “Quem sou eu?”.

Quando o desencontro acontece entre legislação e tribunais o drama persiste e também persiste a dúvida do primeiro verso. Uma transferência de mercadorias entre matriz e filial é, sem dúvida, uma operação de uma única pessoa (jurídica), mas o sistema de arrecadação do imposto sobre circulação de mercadorias nem sempre está ajustado a essa percepção.

Pela Lei Complementar n. 87/1996, mais conhecida como Lei Kandir, num primeiro momento, entende-se pela incidência de ICMS na saída de mercadorias de um estabelecimento, ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular. Isso porque, de acordo com a legislação, os estabelecimentos do mesmo titular são autônomos entre si, em atenção ao princípio da autonomia do estabelecimento.

Sucede que os Tribunais Superiores possuem entendimentos reiterados em sentido contrário, na medida em que consideram que prevalece a acepção jurídica da expressão circulação de mercadoria, isto é, entendem que apenas incide ICMS na transferência de titularidade do bem.

Tal entendimento foi pacificado pelo Supremo Tribunal Federal – STF no julgamento do Tema n. 297 (RE 540.829 – SP), que fixou a tese no sentido de não incidir ICMS na operação de arrendamento mercantil internacional, salvo na hipótese de antecipação de compra, quando configurada a transferência da titularidade do bem.

Geraldo Ataliba e Cleber Giardino, citados por José Eduardo Soares de Melo, trazem valiosa lição acerca do conceito de circulação jurídica ao mencionar que circular significa, para o Direito, mudar de titular. Se um bem ou uma mercadoria muda de titular, circula para efeitos jurídicos. (MELO. José Eduardo Soares de. ICMS: Teoria e Prática – 15 ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora. 2020. Pg. 15. Destaques adicionados).

Evidente, portanto, que o conceito de circulação jurídica pressupõe a mudança de titularidade da mercadoria.

O Superior Tribunal de Justiça – STJ também já se manifestou sobre o assunto, editando inclusive a Súmula n. 166: não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.

Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal – STF julgou o Tema n. 1.099 (ARE 1.255.885) com repercussão geral, fixando sua tese no sentido de não incidir ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em Estados distintos, reafirmando, por consequência, a jurisprudência da Corte.

No referido julgamento, constou expressamente que é irrelevante o fato de haver transferência interestadual de mercadoria se for entre estabelecimentos do mesmo titular.

Mesmo diante do vasto entendimento jurisprudencial dos Tribunais Superiores acerca da necessidade de transferência de titularidade para fins de incidência de ICMS, o Governador do Estado do Rio Grande do Norte ingressou com a Ação Direta de Constitucionalidade – ADC n. 49, no Supremo Tribunal Federal – STF, com o objetivo de declarar a constitucionalidade dos art. 11, §3°, inciso II; art. 12, inciso I e art. 13, §4°, da Lei Complementar n. 87/1996, que tratam especificamente de (i) autonomia do estabelecimento; (ii) fato gerador de ICMS na hipótese de saída de mercadoria para outro estabelecimento do mesmo titular e (iii) base de cálculo relativa a essas operações.

A ação então foi levada ao STF pelo referido Governador para validar a cobrança nessa hipótese de transferência.

Contudo, o STF julgou o mérito da questão em meados de 2021 e declarou a inconstitucionalidade dos trechos da Lei Complementar n. 87/1996 que previam a incidência do ICMS ainda que para outro estabelecimento do mesmo titular.

No julgamento ficou consignado que o deslocamento de mercadorias entre estabelecimentos do mesmo titular não configura fato gerador da incidência de ICMS, ainda que se trate de circulação interestadual, uma vez que a hipótese de incidência do tributo em tela é a operação jurídica praticada por comerciante que acarreta circulação de mercadoria e transmissão de sua titularidade ao consumidor final.

O Governador do Estado do Rio Grande do Norte opôs embargos de declaração buscando a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade e a regulamentação da transferência de créditos entre as empresas, que foi julgado no último dia 22 de abril.

Com isso, o Supremo Tribunal Federal – STF julgou procedente os embargos para modular os efeitos a fim de que a decisão tenha eficácia a partir do exercício financeiro de 2024, ressalvados os processos administrativos e judiciais pendentes de conclusão até a publicação da ata de julgamento da decisão de mérito em 2021.

Entende-se que a polêmica modulação de efeitos, utilizada para que a decisão de inconstitucionalidade não cause grande prejuízo financeiro aos cofres dos Estados, deixou desprotegido uma parcela de contribuintes que pararam de destacar o ICMS nas notas fiscais de transferência de mercadorias entre filiais sem o prévio ajuizamento de ação judicial, em atenção à reiterada jurisprudência dos Tribunais Superiores.

Essa parcela de contribuintes agora corre o risco de ser cobrada por um imposto que sequer incidiu na operação entre estabelecimentos de mesmo titular, isto é, mesmo sem a ocorrência do fato gerador.

Ao julgar os embargos de declaração, o STF também decidiu assertivamente pela possibilidade das empresas transferirem os créditos de ICMS entre os estabelecimentos a partir do exercício financeiro seguinte (2024), mesmo se os Estados não disciplinarem a questão no referido prazo.

Isso acontece porque o ICMS é um imposto não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou por outro Estado, nos termos do art. 19, da Lei Complementar n. 87/1996.

Sobre a questão, o Ministro Relator mencionou que a decisão proferida não afasta o direito ao crédito da operação anterior que, em respeito ao princípio da não-cumulatividade, restam mantidos, nos termos do jurisprudência do próprio STF (RE 1.141.756, Tribunal Pleno, relator Marco Aurélio, j.28.09.2020, DJ 10.11.2020).

Nos últimos versos daquele bolero há algo de profético para os Estados: “É bem possível que eu não tenha mais direito”.

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