As instituições democráticas e o Estado de polícia

“Os episódios da última semana são um notável registro de que há, na fronteira entre o exercício dos poderes da República, uma zona cinzenta e inexplorada.”

A evolução institucional do Brasil tem sido objeto de louvor pela classe política, em declarações tanto oposicionistas como governistas. Nas operações investigatórias em andamento, sob os fortes holofotes da opinião pública, os opositores congratulam a coragem da Polícia Federal e do Poder Judiciário, assim como membros do Governo elogiam, quando interpelados a respeito de acusações contra seus correligionários, a independência de atuação das instâncias encarregadas da investigação – em geral, proclamam que se trata do bom funcionamento das instituições e da inexistência de intrusão das autoridades do Poder Executivo nesses afazeres.

Há, no entanto, o perigo de que as instituições democráticas, sendo levadas pelas circunstâncias à necessidade de atuação máxima, raiem o limite de suas competências, colocando à prova seus alicerces. Os episódios da última semana são um notável registro de que há, na fronteira entre o exercício dos poderes da República, uma zona cinzenta e inexplorada. Não se tem bem definido, por exemplo, qual seria a corporação policial competente para cumprimento de mandados de busca e apreensão, expedidos pelo Supremo Tribunal Federal, nas dependências do Senado. Há quem sustente que andou bem a Polícia Federal em executar por si a ordem e quem aponte a Polícia Legislativa como a que deveria ter-se encarregado da tarefa. E ambos argumentos são coerentes e sustentáveis juridicamente.

Inegável que a Polícia Federal, a Procuradoria da República e o Poder Judiciário estão, no exercício de seus deveres, sendo obrigados pelos graves fatos que vêm sendo revelados a testar seus limites, atuando nas extremidades de seu alcance. Nesse reduto, porém, a cautela deve ser redobrada igualmente inédita; se recuar antes do ponto máximo, que ainda é desconhecido, será imperdoável omissão, que significaria a permissividade em relação aos malfeitores; se houver exacerbação, o delicado equilíbrio da democracia pode ruir. A superdosagem do remédio, afinal, transforma-o em veneno.

O risco é de que ao cabo da ponte histórica que estamos a atravessar esteja o chamado Estado de polícia, conceito consagrado pela historiografia liberal alemã (Polizeistaat) na segunda metade do século XIX e que ganhou conotações mais amplas durante o século XX. Trata-se de, num cenário inóspito, reestruturar o país nomeando-se heróis messiânicos, dotados de virtudes e supostamente capazes de punir os delinquentes que se teriam apoderado da máquina pública. 

Esses salvadores, com a missão de exterminar os malfeitos, costumam dissolver parlamentos e eliminar as formas de representação popular. O raciocínio simplista, remonta também à fase do terror da Revolução Francesa, adotando um perigoso maniqueísmo. Há corrupção na Câmara? Que seja fechada! É a cura da unha encravada pela amputação do braço.

Nascem assim os estados totalitários e extremismos que discrepam fundamentalmente da democracia. Na transição de um Estado democrático para um Estado de polícia, o caminho é desobstruído e pode contar inclusive com apoio de grande parte da população. O caminho de volta, entretanto, se há, é terrível, porque sem democracia tudo fica mais difícil.

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