O inoportuno dia do contabilista

“Minhas mais remotas memórias trazem essa época do ano como parte do calendário familiar, feito Natal ou Páscoa”

Lembro o som ritmado das máquinas de escrever servindo-me de acalanto, como normalmente servem pingos de chuva ao adormecer. Ajeitava-me sonolento no colchonete estendido sobre os tacos, à meia-luz, para acordar lá pelas quatro da manhã, com minha mãe dizendo que era hora de irmos para casa.

Todo abril, por causa do imposto de renda, era mês de acampar no escritório de contabilidade dos meus pais. Minhas mais remotas memórias trazem essa época do ano como parte do calendário familiar, feito Natal ou Páscoa.

O volume de serviço para os contabilistas é naturalmente maior no mês de abril, em virtude do prazo para entrega da declaração de ajuste anual de imposto de renda pelas pessoas físicas, sempre no dia trinta. O trabalho extraordinário, porém, nunca foi encarado como um fardo pela minha família, mas um desafio de inteligência e contra o tempo, o que seguramente ficou marcado fundo na minha personalidade.

Embora eu fosse criança, não há como esquecer o entra-e-sai de clientes, invariavelmente simpáticos comigo – quase um mascote do escritório, então. 

Uma grande parte dos clientes não levava de uma só vez toda documentação necessária à declaração, de modo que as visitas repetiam-se. Isso também deixava pilhas de pastas de documentos à espera dos detalhes finais. Depois disso, não eram transmitidos pela internet, como hoje, mas datilografados, com segunda via em carbono, em formulários pré-emitidos pela Receita Federal. Não havia como importar dados, e reescreviam-se, ano a ano, até mesmo as declarações de bens – que naquele tempo incluíam linhas telefônicas! 

A entrega das declarações era feita em plantões da Receita Federal, até a meia-noite do dia trinta. Eu ia junto, porque para mim equivalia a testemunhar o cruzamento da linha de chegada. Lembro de um querido cliente, importante médico, que parecia partilhar esse gosto comigo e algumas vezes também acompanhava esse momento.

Um pouco antes, precisamente cinco dias, comemora-se o dia do contabilista. Ou melhor, seria comemorado, se houvesse tempo. O contexto de assoberbamento de serviço é tamanho, que poucos clientes lembram-se de parabenizá-los, a despeito do intenso contato que mantêm nesse período. Talvez seja a data de comemoração de ofício ou profissão mais inoportuna. 

Em minha visão infantil, era uma grande injustiça, que se enfatizava dois dias depois, quando aniversariava meu irmão mais velho, também contabilista e envolvido no turbilhão de afazeres de abril. Reuníamo-nos na cozinha do escritório em torno de um bolo improvisado. Até isso era parte da minha tradição familiar. Décadas depois, essas lembranças são-me ainda muito caras. 

Tornei-me, afinal, tributarista – os motivos não me pareciam tão óbvios quando cedi às inclinações profissionais – e hoje, em razão de meu trabalho, tenho contato cotidiano com muitos contadores, sub-homenageados pelo vinte e cinco de abril, tão inoportuno quanto importante. Aliás, esta reflexão motivada pelo meu desejo de homenagear os contabilistas, todos eles, acabou por permitir-me saborear o passado; por pouco tempo, porque na minha atividade todo mês é abril.

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